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02 de fevereiro de 2022

Escravidão contemporânea no Brasil

Nesta semana, dois casos graves foram denunciados no Rio Grande do Norte

No Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho e da Previdência, somente no ano de 2021, foram encontrados 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea. O maior número desde os 2.808 trabalhadores de 2013. Destes, o serviço doméstico envolveu 27 vítimas - em 2020, havia sido apenas três.
 
Poucos dias após o 28 de fevereiro, quando é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, situações que envolvem o trabalho análogo à escravidão foram denunciadas no Rio Grande do Norte. Nesta terça-feira (1), o colunista da UOL, Leonardo Sakamoto, trouxe uma repostagem que contava a história da Maria (nome fictício) , que há 32 anos era responsável pelos serviços domésticos e recebia em troca moradia, comida, roupa e alguns presentes, no município de Mossoró.  Maria nunca teve salário ou conta bancária, nem tirava férias ou interrompia os afazeres nos finais de semana. 
 
A fiscalização considerou a ocorrência de trabalho forçado, condições degradantes e jornadas exaustivas. Segundo auditores fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador. 
 
Em outra parte da mesma operação, fato também destacado pelo UOL, uma mulher foi resgatada na capital do estado, Natal. Nascida em 1969 e analfabeta, ela estava há cinco anos trabalhando como doméstica e cuidadora para sua empregadora, uma idosa.
 
Permanecia 24 horas à disposição dela, inclusive à noite, dormindo num colchão na cama ao lado da patroa. Descansava apenas a cada 15 dias, trabalhava nos feriados e tirou férias apenas uma vez. Recebia cerca de R$ 500 por mês.
 
Também de acordo com a fiscalização, ela entendia que o péssimo tratamento que recebia, o que incluía gritos e xingamentos, não era correto. Mas se sentia responsável pela saúde da empregadora.
 
A matéria do UOL completa você confere aqui: https://bit.ly/3GlBl0Y
 
BATE PAPO
 
Foram situações como essas que chamaram a atenção da juíza do Trabalho da 9a Vara de Natal, Aline Campos, para desenvolver sua tese de Doutorado na Universidade de Nottingham, Inglaterra. Uma vez que, para além dos 1937 trabalhadores resgatados em regime de escravidão no Brasil, há a estimativa de que sejam aproximadamente 370 mil, segundo a Global Slavery Index 2018.
 
Para falar a respeito de assunto tão importante, batemos um papo com a magistrada. Vale a pena conferir: 
 
1) Por qual motivo escolheu o trabalho escravo para sua tese de doutorado?
 
Estima-se que haja cerca de 370.000 trabalhadores escravos no Brasil (Global Slavery Index 2018). Destes, muito poucos são resgatados. Em 2021 foram apenas 1937 resgates no Brasil. 
 
Entre os resgates, uma quantidade bem menor de casos chega ao Poder Judiciário. Dos casos julgados, há um número ainda mais reduzido de condenações. Daí se extrai que o trabalho escravo é um fenômeno invisibilizado e que os mecanismos de combate são ineficientes. Se fosse observado o ritmo atual dos resgates e não houvesse nenhum aumento no número de casos, demoraríamos quase 200 anos para erradicar o trabalho escravo, embora a escravidão legal já tenha sido abolida no século XIX. 
 
Este cenário aponta para a necessidade de compreendermos melhor o fenômeno, suas causas, seus mecanismos de combate, o que torna os trabalhadores vulneráveis e qual é o papel que o Poder Judiciário desempenha na luta contra o trabalho escravo. 
 
 
2) Qual sua avaliação sobre essa questão no Brasil hoje?
Por muitos anos o Brasil foi internacionalmente considerado um paradigma de combate efetivo ao trabalho escravo, em razão de um conceito avançado e mecanismos eficientes, como a lista suja e os grupos móveis. A reforma trabalhista trouxe importantes retrocessos, porque legitimou a precarização do trabalho, impôs limites a condenações e criou obstáculos ao acesso à justiça. 
 
O atual Governo vem atuando indisfarçavelmente para o desmonte do sistema de combate ao trabalho escravo, por meio de redução de recursos, diminuição dos grupos móveis, interferência em órgãos de combate, perseguição à sociedade civil organizada, tentativas de estigmatização e criminalização dos movimentos sociais, entre outros mecanismos. 
 
A pandemia acentuou ainda mais esse processo, na medida em que aumentou a vulnerabilidade dos trabalhadores, dificultou os resgates e aprofundou o abismo social. Enfim, nos últimos anos estamos experimentando uma série de retrocessos civilizatórios que tornam o combate ao trabalho escravo ainda mais desafiador e importante. 
 
3) Como os magistrados trabalhistas atuam no combate ao trabalho escravo?
O Poder Judiciário precisa urgentemente rever o seu papel. No Brasil, o trabalho escravo compreende não apenas o trabalho forçado e a escravidão por dívidas, mas também condições degradantes e jornada exaustiva (artigo 149, do Código Penal). 
 
Minha pesquisa de mestrado revelou que, em inúmeros casos, nós magistrados trabalhistas reconhecemos as condições degradantes de trabalho, mas silenciamos quanto à caracterização dessas condições como trabalho escravo. 
 
Às vezes chegamos a dizer que o trabalho é desumano ou indigno, mas entendemos que essas condições são aceitáveis, principalmente no meio rural. Com isso, naturalizamos a degradância, ou seja, normalizamos a violação à dignidade da pessoa humana. Ao fazermos isso, ao invés de atores sociais atuantes no combate ao trabalho escravo, acabamos for legitimar e fortalecer práticas abusivas, ou seja, desempenhamos um papel oposto ao que deveríamos desempenhar.  
 
Você poderia dar um exemplo de como isso ocorre?
Sim. Na prática, recorrentemente aceitamos que trabalhadores exerçam jornadas exaustivas, sem acesso a água potável, sem sanitários, em condições precárias de alojamento, por exemplo. Negamos ou silenciamos sobre a caracterização de trabalho escravo por entendermos que se trata de um trabalho rústico, ou porque faz parte da cultura local, principalmente aqui no nordeste. Mas jamais aceitaríamos essas condições para nós mesmos. 
 
Com isso nós, juízes, majoritariamente brancos, economicamente privilegiados, de elevado nível educacional e habitantes de centros urbanos, elegemos para trabalhadores, majoritariamente negros, pobres, iletrados e normalmente residentes em zonas rurais, patamares de dignidade diferentes dos nossos. 
 
Esse modo de pensar e de julgar é um legado imperialista, patriarcal e colonialista sobre o qual precisamos refletir e combater diuturnamente.

Autor: Com informações de Leonardo Sakamoto / UOL