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30 de agosto de 2021

A Lei nº 14.195/2021 e o novo modelo de citação no CPC: efeitos da pandemia COVID-19?

Por Luciano Athayde Chaves - Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juiz Titular da 2a. Vara do Trabalho de Natal/RN (TRT da 21a. Região).

Muito se tem discutido quanto aos efeitos dos procedimentos que vêm sendo adotados pelos tribunais brasileiros em razão das medidas sanitárias e de distanciamento social decorrentes da pandemia COVID-19. 

Desde a Resolução nº 314, de 20 de abril de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que autorizou a retomada das atividades jurisdicionais, a partir de 4 de maio daquele mesmo ano, na forma remota ou telepresencial, inclusive com a realização de audiências e sessões de órgãos colegiados por meio de plataformas de videoconferência, já incontáveis os atos normativos, em todas as instâncias judiciárias, em torno do tema.

A resiliência da pandemia tem fortalecido a utilização de várias estratégias procedimentais que implicam a formalização de atos processuais por meio, digamos, não tradicionais, em especial por meio eletrônico. O próprio Conselho Nacional de Justiça tem reforçado essa prospectividade de medidas de ampliação da virtualização dos procedimentos (considerando que o PJe já é uma arena de realização de atos à distância), com a adoção do projeto Justiça 4.0. 

Nesse campo, a novidade mais recente fica por conta da Lei Federal nº 14.195/2021. Com o objetivo de alterar os requisitos para a abertura de empresas, a referida Lei dedicou um capítulo (Capítulo X) para tratar da "racionalização processual", perpetrando alterações no Código de Processo Civil.

A rigor, o CPC de 2015 já previa a intimação por meio eletrônico (art. 270), sendo, inclusive, requisito da petição inicial a indicação do endereço eletrônico das partes (art. 319). A própria citação já era autorizada por meio eletrônico (art. 246, inciso V, na redação original), mas sua concretização estava vinculada a um cadastro prévio - que excluía microempresas e empresas de pequeno porte, medida que ainda não logrou inteira materialização, até mesmo em razão dos limites práticos para a formação desse cadastro.

É de lembrar que o Conselho Nacional de Justiça instituiu, por meio da Resolução nº 234/2016, a Plataforma de Comunicações Processuais do Poder Judiciário (Domicílio Eletrônico), como política pública derivada do modelo apontado pelo CPC, de 2015.

Pois bem. A Lei Federal nº 14.195/2021 altera exatamente o art. 246 do Código de Processo Civil, dispondo da seguinte forma:

"Art. 246. A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça.

I - (revogado);

II - (revogado);

III - (revogado);

IV - (revogado);

V - (revogado).

§ 1º As empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio.

§ 1º-A A ausência de confirmação, em até 3 (três) dias úteis, contados do recebimento da citação eletrônica, implicará a realização da citação:

I - pelo correio;

II - por oficial de justiça;

III - pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório;

IV - por edital.

 

§ 1º-B Na primeira oportunidade de falar nos autos, o réu citado nas formas previstas nos incisos I, II, III e IV do § 1º-A deste artigo deverá apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação enviada eletronicamente.

§ 1º-C Considera-se ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% (cinco por cento) do valor da causa, deixar de confirmar no prazo legal, sem justa causa, o recebimento da citação recebida por meio eletrônico.

..........................................................................................................................................

 

§ 4º As citações por correio eletrônico serão acompanhadas das orientações para realização da confirmação de recebimento e de código identificador que permitirá a sua identificação na página eletrônica do órgão judicial citante.

§ 5º As microempresas e as pequenas empresas somente se sujeitam ao disposto no § 1º deste artigo quando não possuírem endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).

§ 6º Para os fins do § 5º deste artigo, deverá haver compartilhamento de cadastro com o órgão do Poder Judiciário, incluído o endereço eletrônico constante do sistema integrado da Redesim, nos termos da legislação aplicável ao sigilo fiscal e ao tratamento de dados pessoais." (NR)

Como se pode observar, a alteração foi bastante significativa. Com efeito, a citação eletrônica, antes uma opção disponível na redação original do art. 246, passa a ser a regra, já que é a forma preferencial de citação, somente se aplicando outras modalidades (pelo correio, por oficial de justiça, por edital e mediante registro nos autos de comparecimento voluntária da parte citanda) caso malograda a tentativa de citação por meio do correio eletrônico.

A nova redação do § 1º mantém, em linhas gerais, a mesma proposta de formação de cadastro de empresas públicas e privadas, mas inova o § 5º do dispositivo quanto ao tratamento das microempresas e empresas de pequeno porte, que passam a ser obrigadas também ao integrar o cadastro, salvo se seus dados eletrônicos para citação já estiverem disponíveis na Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), instituída pela Lei Federal nº 11.598/2007, cujas informações serão compartilhadas com o Poder Judiciário (§ 6º).

Interessante notar que a ênfase na citação eletrônica é de tal envergadura, a par da alteração legal em debate, que se estabeleceu uma obrigação de justificação, pela parte citada por meios tradicionais, quanto às razões pelas quais não teria acusado o recebimento da ordem de citação eletrônica enviar ao endereço cadastrado, reputando a falta de justificativa plausível como ato atentatório à dignidade da justiça (contempt of court), com previsão de multa de até 5% do valor da causa. Essa estratégia adotada pelo novo modelo de citação é robusta a revelar que receber um chamado ao processo por meio de correio eletrônico não é uma faculdade, mas uma conduta deôntica, eis que sancionada com penalidade expressamente prevista em lei.

Note-se que a Resolução CNJ nº 345/2020, que institui o "Juízo 100% Digital" já prevê algo semelhante, dispor, em seu art. 2º, parágrafo único, o seguinte: 

"No ato do ajuizamento do feito, a parte e seu advogado deverão fornecer endereço eletrônico e linha telefônica móvel celular, sendo admitida a citação, a notificação e a intimação por qualquer meio eletrônico, nos termos dos arts. 193 e 246, V, do Código de Processo Civil".

Por certo que o novo modelo desperta algumas dúvidas, como, por exemplo, a questão da titularidade da informação quanto ao endereço da parte citanda, no sentido de que se seria bastante a indicação na petição inicial do respectivo e-mail ou apenas seria viável a citação se integrante a informação dos cadastros a que se refere o art. 246 do CPC. Também se seria requisito a disponibilização da ferramenta prevista no § 4º (fornecimento de código para acesso ao sistema para confirmação da citação).

De outro lado, as disposições trazidas pela Lei nº 14.195/2021 não excluem as regras dos rito(s) emergencial(is), adotadas pelos mais diversos segmentos de Justiça e respectivos tribunais, na medida em que essas regras têm peculiaridades que se ajustam às realidades locais, impactadas de forma diferente pela pandemia COVID-19.

Outra questão que se coloca é a de aplicação dessas novas disposições a outros subsistemas processuais, como o processo eleitoral, administrativo ou do trabalho. O art. 15 do CPC, no entanto, admite a subsidiariedade e/ou supletividade das regras do Código a esses subsistemas, sendo a discussão da integração desses subsistemas um problema de hermenêutica processual. De todo modo, não vislumbro bloqueios para a adoção das novas regras, mesmo porque essas inovações já estão em curso no rito emergencial e absorvem a evolução técnica da mediação entre o Judiciário e os atores do processo, inclusive quanto ao chamamento do réu a Juízo.

Por certo que é preciso debates internos sobre a aplicação dessas inovações, uma vez que a citação é um dos atos mais importantes do processo e se constitui uma das chaves procedimentais da segurança jurídica e da ampla defesa, razão pela qual todo o cuidado e certeza devem ser aplicados no manejo das ferramentas disponíveis para informar ao réu que contra si tramita uma demanda judicial.

O tema, portanto, mostra-se aberto à sociedade de intérpretes do Direito.