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02 de novembro de 2020

O arquipélago remuneratório da magistratura nacional

Artigo por Luciano Athayde - Via Conjur

A questão da remuneração da magistratura nacional é tema recorrente no debate público, em especial quando se discute a composição dos vencimentos dos juízes. Não é assunto apenas da nossa época. Desde o Império, todas as reformas constitucionais, principalmente as que envolveram o Judiciário, tocaram, de algum modo, no assunto.

 

Nos nossos dias, a questão mais sensível de tal debate diz respeito ao pagamento de benefícios, auxílios e verbas indenizatórias. Essa discussão costuma invocar o grau de efetividade da atuação do Conselho Nacional de Justiça no que se refere à gestão do estatuto que rege os magistrados de todo o país, uma de suas funções constitucionais.

 

Reportagem de Fábio Fabrini, Leonardo Diegues e Diana Yukari, publicada na Folha de S. Paulo de 3 de outubro deste ano, aponta a falta de uniformidade quanto aos patamares remuneratórios dos magistrados, não apenas em relação a valores brutos, mas também no que se refere a rubricas pagas aos membros dos diversos segmentos de Justiça. Os números apresentados na matéria estampam as discrepâncias entre os valores médios pagos especialmente nas Justiças federal, estadual, Militar e do Trabalho.

 

O ponto de partida, e mais sensível, do problema repousa no fato de que, pela Constituição Federal, o Poder Judiciário brasileiro é uno, ainda que organizado, basicamente, em duas grandes esferas, a federal e a estadual. 

 

Trata-se de modelo que responderia ao desenho federativo, por meio do qual, além do poder central, cada ente estadual passou a ter a prerrogativa de organizar a Justiça local. Logo, a unidade judiciária deveria implicar a unidade de regras processuais e a homogeneidade do estatuto da magistratura, isto é, todos os juízes deveriam estar submetidos a uma única legislação de regência profissional.

 

A realidade, no entanto, tem sido diferente. A unidade judicial se mostra, em muitos aspectos, apenas uma promessa constitucional, quando não um valor organizacional abstrato. Desde a instauração da República, a unidade efetiva do Judiciário tem sido um grande desafio. A grande liberdade de organização da Justiça estadual resultou na criação de corpos judiciais isolados uns dos outros, com regras próprias e culturas organizacionais distintas.

 

O esforço de construção de um estatuto único malogrou sucessivamente. Durante longo tempo, somente foi possível o que Castro Nunes, na década de 1940, denominou de "unidade funcional", ou seja, os juízes teriam em comum algumas regras constitucionais básicas, como as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, além de algumas vedações para acúmulo de cargos públicos e exercício de atividade partidária. 

 

O restante, como a estrutura salarial e os critérios de promoção na carreira, por exemplo, teria previsão em textos legais infraconstitucionais, inclusive nos regimentos internos dos tribunais. Esse quadro aprofundou a construção, na prática, de uma multiplicidade de magistraturas no Brasil, resultado de um modelo de governo judicial fragmentado e insular.

 

Apenas no regime militar, com a Emenda nº 7, de 1977, passou-se a prever a existência de um estatuto único, em cenário de distensão política que contou com ativa participação do Supremo Tribunal Federal na elaboração de uma reforma judiciária, de viés mais centralizadora, apesar de resistências por parte dos juízes. Em 1979, tal estatuto é promulgado, com o nome de Lei Orgânica da Magistratura Nacional, dispondo amplamente sobre o regime jurídico dos magistrados, inclusive quanto a direitos, vantagens e deveres da magistratura. Isso, contudo, não autoriza reconhecer que a fragmentação estatutária desapareceu a uma só vez.

 

Com a Constituição de 1988, o modelo de estatuto único foi mantido, mas foi prevista uma atualização dessa legislação. No entanto, 32 anos depois, o país ainda assiste a essa lacuna, à espera de um novo estatuto da magistratura. E as dificuldades para sua aprovação parecem estar na realidade fragmentada do Judiciário brasileiro, que resiste a mudanças. Não é demais sublinhar que estamos falando de nada menos do que 91 tribunais, cuja tradição de insulamento forjou a metáfora do "arquipélago" da Justiça.

 

Em pesquisa documental que realizei sobre o tema, identifiquei que, até 2019, o Supremo Tribunal Federal tinha julgado 60 ações de controle concentrado envolvendo o assunto "unidade do estatuto da magistratura", sendo 83% dessas ações ajuizadas contra textos de origem estadual, tendo o tribunal decidido pela invalidade, total ou parcial, em nada menos do que 90% dos casos.

 

Além disso, foi observado um número elevado de leis estaduais que dispõem sobre temas que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito considera como privativos do estatuto nacional da magistratura, ou seja, que não podem ser tratados por leis estaduais. Há outros casos mais graves, nos quais leis estaduais instituem uma completa "lei orgânica" da magistratura local, diploma legal que não possui respaldo na Constituição Federal, que prevê apenas um estatuto nacional.

 

A existência dessa multiplicidade de estatutos acaba provocando, na realidade judiciária, a convivência de múltiplas magistraturas, com o agravante de que o Conselho Nacional de Justiça não tem conseguido atuar de forma eficaz no controle dessa disfuncionalidade estatutária. Isso porque a interpretação que tem prevalecido no Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o perfil administrativo do CNJ não lhe permite negar validade à lei estadual, ainda que esta esteja em desacordo com a Constituição, na medida em que o conselho não possui função jurisdicional.

 

Assim, a unidade do estatuto fica à mercê de impugnações pontuais por atores legitimados pela Constituição para propor ações de controle de constitucionalidade, como o procurador-geral da República e governadores dos Estados e do Distrito Federal, mecanismo que não tem se mostrado eficiente para reduzir ou eliminar a fragmentação estatutária da magistratura.

 

Esses fenômenos estão na base, portanto, das diferentes realidades remuneratórias da magistratura e parecem ter direta relação com as dificuldades na aprovação do novo estatuto. Enquanto as causas não forem enfrentadas, continuaremos a observar a unidade do Judiciário como um valor constitucional abstrato e ineficaz, assim como continuaremos a conviver com o arquipélago remuneratório de sua magistratura.

 

 

Luciano Athayde Chaves 

Juiz do Trabalho do TRT21 e Juiz Auxiliar da Corregedoria Regional.

É doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), magistrado e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).